Friday, December 15, 2006

Vai pra dentro

"Vai pra dentro", disseste tu. Foi das coisas mais bonitas que já ouvi. Fez-me recuar quarenta anos, ao tempo em que a minha mãe, do cimo dos seus 120 quilos, à porta da taverna do restaurante, atirava com um vozeirão imenso por sobre as casas, ruas e quintais: "Caaaarlos, anda pra deeeeentro!" Eu dava a última nicada do pião do parceiro e esgueirava-me a toda a brida para casa. Mal punha o pé na soleira da porta, a minha mãe passava-me a mão no pêlo e sentenciava pela enésima vez nesse dia: "Não sais mais de casa hoje. E livra-te de eu dizer ao teu pai!". Nunca dizia. Quando a asneira era maior, atirava-me para o seu regaço e chorava baixinho. Ela esborrachava os imensos seios moles contra as minhas bochechas e fazia de conta que acreditava no meu arrependimento.
Anda pra dentro. E eu ia. Para o calor de casa. Para o aconchego das carnes maternas. Para as luzes amarelas incandescentes que, vistas da rua, eram faróis orientadores, quentes, protectores. Há quarenta anos, quando a noite caía sobre uma pequena vila de pescadores como era então a Póvoa de Varzim, estar dentro de minha casa era tão bom, tão seguro, tão acolhedor... Anda pra dentro. E eu ia.
Um grande amor, como aquele que a minha mãe tinha por mim, é feito destas insignificâncias, destes automatismos. São palavras, frases, trejeitos, olhares, que denunciam intimidades primordiais. Quando me dizes Vai pra dentro, sinto-me envolvido por um bem-estar antigo, conhecido. Apetece-me abraçar-te, perder-me entre os teus braços, adormecer.
Vai pra dentro. Para além de minha mãe, nunca ninguém me disse tal coisa. E eu, que dou cada vez mais importância aos pequeninos sinais da vida, às atitudes mais banais e aos gestos que quase toda a gente desvaloriza, vi nessas três palavras um projecto de vida, uma maneira de estar, um modo de relacionamento. Talvez eu esteja a exagerar, dirás tu. Talvez não. As pessoas não se dão a conhecer nos grandes palcos, nos grandes momentos. A minha, a tua verdade essencial, desvenda-se mais completamente no desprendimento de um olhar, de uma conversa sem desígnio, de um passeio sem destino, de uma noite de copos.
Vai pra dentro. E eu vim. Obedeci-te. Aqui estou, em minha casa de Vila do Conde, às 10 da noite, a pensar em ti. A desejar adormecer no teu regaço, com uma asneira tão grande para confessar que nem a minha mãe seria capaz de me perdoar.
Janeiro 2003

1 Comments:

Blogger Fernando Castro Martins said...

Achei, ao acaso, este seu belíssimo texto. Tenho de lho agradecer, que estou muito, muito edificado...

2:28 PM  

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