Friday, January 18, 2008

Civilização e barbárie

Especialistas “descobriram” agora que os tribunais de Lisboa são os que estão mais entupidos com processos, de acordo com um estudo recente da Faculdade de Economia da Universidade de Lisboa. E garantem que a reforma da justiça em Portugal não se faz com “mais dinheiro”. Ora aqui está uma novidade absoluta que deixa toda a gente com a boca aberta de espanto. Um dia destes, alguém vai “descobrir” que milhares de pessoas perdem diariamente tempos infindos na segunda circular ou a atravessar a ponte sobre o Tejo. O problema destas “descobertas” está no facto de, apesar das dramáticas evidências que encerram, continuar a haver ilustres pensadores do “caso português” que confundem tribunais empanturrados, vias e pontes congestionadas, salários, rendimentos e custo de vida mais altos, com “progresso” e “civilização”. A fina intelectualidade amiga da grande e do grande capital, que se difunde um pouco por todo o território, nunca perceberá que os “índios” espalhados pelo resto da paisagem, quando reclamam mais dinheiro, mais atenção, mais investimento público, mais obras e muitos mais, estão, de facto, a tentar fazer com que a vida do formigueiro da Grande Lisboa fique um pouco mais civilizada.

Saturday, November 24, 2007

Má morte na Gralheira

Senhor da Boa Morte, Gralheira, Serra de Montemuro
A Gralheira é uma das aldeias típicas de Montemuro. Destino para muitos citadinos que procuram na serra a “paz” e a “natureza” cilindradas pelo bulício das grandes metrópoles. O que lá se encontra são misérias. Duas pizzarias duas, casas tipo maison em “estilo português suave”, velhas casas em ruínas com vestígios de colmo no telhado, agricultura arruinada e uma capelinha em honra do Senhor da Boa Morte com um Cristo crucificado talhado em pedra, pregado a um altar em talha de uma simplicidade enternecedora. Mas ninguém liga ao Senhor. A capela está quase sempre fechada e só sobrevive porque há uns tipos que dizem que aquilo tem interesse, vá lá saber-se porquê. Esta senhora é a guardiã da capela e do senhor da Boa Morte. E guarda também a caixa das esmolas da rapaziada que mete a mão à socapa para sacar uns cobres.

Friday, November 16, 2007



Uma igreja sem santos
Igreja do Convento de S. Francisco, em Coimbra, em trânsito para um Centro de Congressos. Mesmo para um ateu empedernido, uma igreja sem santos é um lugar incompreensível. Inaceitável.

Wednesday, March 28, 2007

Uma experiência inconfessada
na Casa do Tamanqueiro


Se os meus olhos vissem as coisas, as pessoas, as boas ou más ocorrências no seu estado normal, a Casa do Tamanqueiro seria um lugar agradável, recatado, muito limpo e mimoso; seria um lugar onde a natureza ancestral se encontra quase imaculada, onde o tempo flui ao sabor do pachorrento movimento dos bois, onde os latidos ganham uma importância extraordinária, onde os sinos continuam a ouvir-se ao longe, onde as pessoas se cumprimentam e se saúdam mesmo sem se conhecerem, onde as portas se abrem para os desconhecidos.

É nisto que a Casa do Tamanqueiro está mergulhada e é tudo isto que os seus donos conseguiram recriar, com um escrupuloso cuidado nas coisas que enchem salas, quartos, cozinha, no carinho que se vê e se sente em tudo, na limpeza impossível de melhorar, no respeito pelo recato dos hóspedes, pela sua intimidade; quer dizer, a casa é uma recriação extraordinária de tempos outros, de outro ritmo de vida, de outros modos de relacionamento, de outros ambientes. Se os meus olhos vissem as coisas, as pessoas, no seu estado de alerta normal, a Casa do Tamanqueiro seria uma experiência boa, pacífica, dolente, macia, suave.

Mas não estavam assim os meus olhos. A Olga, o meu amor de há 20 anos, fez da casa um local de sonho, de promessas para cumprir escrupulosamente, de momentos inesquecíveis. A casa é linda, mas os lugares são, para além de tudo, feitos pelas pessoas que os habitam. E nestes dois dias, eu e a Olga fizemos da Casa do Tamanqueiro o sítio mais bonito, mais perfeito e mais harmonioso do mundo.

Estorãos, Ponte de Lima

27 de Abril de 2003
24 anos antes dos meus 75 anos
idade em que estou autorizado a fazer uma experiência
que não devo confessar aqui…


Saturday, March 17, 2007

Menina Cilinha

Venho, por este meio, propor-lhe que viva comigo. Debaixo do mesmo tecto. No meio dos mesmos tachos e panelas. Entre os mesmos lençóis. A comer da mesma travessa. A partilhar a mesma televisão e o mesmo sistema de alta-fidelidade. Para que decida com plena consciência, vou apresentar-me. Sou aquele rapaz que partilhou com a menina, num restaurantezinho simpático da Gafanha, pataniscas de bacalhau, orelha de porco, pernas de polvo com salsa e cebola e enguias fritas. Lembra-se? Falámos de jornais e jornalistas, dos efeitos colaterais do colapso do antigo império soviético, de rosas, de ritas, de claras, de neves, de madeiras rosadas de carvalho, de amores desfeitos. Lembra-se?

Perdoe-me a ousadia de me apresentar como “o rapaz” que esteve consigo. É mal de família. Os Romeros envelhecem devagar, sabe? O meu irmão, que tem mais onze anos do que eu, diz-me de vez em quando, muito triste, que lhe morreu o amigo Daniel, o Armando, o Quim, todos rapazes com sessenta e tal, setenta anos... Ora, se o meu mano se mira ao espelho e não vê outra coisa que não seja um rapaz, parece-me insensato, como benjamim da família, que eu passe a ser “o senhor Carlos”, não acha?

Antes de regressar à essência desta missiva, deixe-me confessar-lhe uma mágoa: eu gostaria de lhe remeter uma carta pelo correio, pulverizada com cheirinho de alfazema e com duas ou três flores secas colhidas no meu jardim; e, naturalmente, manuscrita. Acontece que a magia das cartas perfumadas e escritas pelo próprio punho desapareceu definitivamente. Ao contrário do que se diz por aí, o fim das velhas cartas não resultou da invasão das máquinas que fizeram a felicidade e a fortuna de Bill Gates, mas sim da inversão de valores e da morte da poesia nos amantes modernos. Com o abandono do papel e das canetas de tinta permanente, e com a substituição dos perfumes de alfazema da Casa Confiança, de Braga, pelas sofisticações parisienses do Calvin Klein, tudo se alterou.

Hoje, mandar uma carta de amor pelo correio arrisca-se a ser mais ridículo do que a própria carta de amor. Porque é provável que o destinatário da cartinha romântica a não distinga, num primeiro olhar, da conta da Telecel, ou da Portugal Telecom, ou da TV Cabo, ou do extracto mensal da Caixa Geral de Depósitos. E mesmo que essa confusão se desfaça logo a seguir, fica irremediavelmente conspurcado o romantismo da perfumada declaração. Vai daí, desisti do intento de lhe remeter uma carta em papel, cheirosa, escrita por mim e enviada pelos Correios. Perdoe-me, portanto, a frieza deste e-mail.E perdoe-me, também, este longo parêntese tecnológico. Voltemos ao que importa. Sou um rapaz descomprometido, sem mazelas físicas visíveis e sem pancadas emocionais ou psíquicas de maior. Nos últimos anos, devido ao meu labor profissional e à falta de adequadas protecções de écran, a minha acuidade visual degradou-se bastante e fui obrigado a usar óculos para corrigir os efeitos da vista cansada e de uma ligeira distorção do cristalino. Nada de grave, garanto-lhe. Mesmo sem óculos, ainda consigo distinguir a menina Cila da minha colega Teresa de Sousa.

Tenho casa posta em Vila do Conde, uma pequena cidade localizada na foz do rio Ave, a 25 quilómetros do Porto. A casa, um T2 espaçoso e bem conservado, sofre de um mal desagradável nos dias de Inverno mais rigorosos: é demasiado fria, talvez por ser grande demais só para mim. O seu assentimento para uma vida a dois tinha, para além de muitas outras, a vantagem suplementar de podermos aproveitar melhor o espaço do apartamento. É capaz de ser conveniente, também, temperar com uns tapetes a fria tijoleira que cobre todas as divisões da casa, mas essa é tarefa que eu gostaria de partilhar com a menina Cila.

O recheio do T2 é propriedade do senhor Joaquim, o meu senhorio, que me cobra todos os meses 450 euros para permitir o usufruto da sua propriedade. O mobiliário não é feio nem bonito, bem pelo contrário, mas esses são pormenores sem grande importância. Uma menina como a Cilinha faz do canto mais humilde um palácio para os homens mais exigentes. Não nasceu Jesus entre as palhinhas? O meu T2 tem a vantagem, sobre a cabaninha do Menino, de ter dois aquecedores, o que nos permite prescindir da vaca e do burro.

Não é meu feitio gabar-me de capacidades que não possuo. Sei cozinhar, passar a ferro, sei conduzir, lavar a loiça, sei mudar uma lâmpada, usar o Black & Decker, pendurar quadros nas paredes. Tenho gostos muito abrangentes, em praticamente todos os capítulos da vida. Por exemplo, gosto desde um peixinho cozido com legumes e batatas, regado com molho fervido ou azeite simples com um trago de vinagre, até uma massada de peixe ou uma moamba de galinha com óleo de palma. Gosto de um jantar a dois, preparado por mim, a plena luz ou iluminado por velas de estearina, com o Caetano, a Bethania ou a Elis em suave fundo musical, e não faço dos pratos e dos tachos semeados pela cozinha um drama fatal. Aliás, tenho uma maneira de preparar as refeições que deixam muito pouco por arrumar. Garanto-lhe, menina Cila, que é mesmo assim. Mas não prescindo, sempre que posso, de deixar para as cozinheiras do Camelo, de Santa Marta de Portuzelo, ou da Bolota Castanha, de Elvas, a tarefa de confeccionar petiscos que me deixam a salivar só de pensar neles.

Quanto a artes e espectáculos, a receita é a mesma da culinária. Gosto de quase tudo. Ando há mais de 20 anos a ouvir versões dos concertos brandeburgueses do João Sebastião Bach, ou das suas Variações Goldberg. Já fiz incursões pela música contemporânea, por exemplo a de Pierre Boulez, mas a experiência auditiva de Pli selon Pli, por exemplo, foi demasiado traumatizante para mim – adormeci a meio da obra e acordei aos saltos com os operáticos berros de uma senhora com uma voz ainda mais potente que os seus enormes peitos. Gosto de fado, a começar pela Amália, o Marceneiro e o Carlos Ramos, e a acabar no Camané e na Mafalda Arnauth. Gosto do sublime mau gosto de António Variações, gosto dos Beatles e dos Stones, dos Cake e dos Tindersticks, gosto da autenticidade de Mónica Sintra, uma espécie de “crooner” dos pobrezinhos e das sopeiras que, como deve calcular, também têm direito à vida, aos seus dramas e à sua música. Gosto, enfim, de futebol, e das modalidades menos apoiadas, como o andebol, o basquete, o cricket, o pião, as damas, a sueca e a bisca lambida.

E gosto de fotografia. Muito. Esta velha inclinação pela imagem nasceu por volta dos meus 14, 15 anos. Nessa altura, transformei um dos quartos devolutos do restaurante dos meus pais numa câmara escura onde a magia dos banhos químicos e da luz do ampliador fazia aparecer árvores, amigos, familiares, ondas revoltas, em papéis de brometo de prata balanceados em tinas de plástico. O meu amor acrisolado pela fotografia tem algumas vantagens. Se a comunhão de cama e mesa, que eu proponho à menina Cilinha, der um dos seus frutos possíveis – um pimpolho saudável, com a cara da mãe e o feitio do pai -, está garantida a cobertura fotográfica de todos os passos do seu desenvolvimento: o corte do cordão umbilical, o primeiro banho, a primeira fralda, a primeira mamada, a primeira papa, o primeiro sorriso, o primeiro aniversário, a alegria dos avós... Era tão bonito, não acha?

E pronto, dou por terminado este intróito de uma relação que eu desejo, do fundo do coração, que seja longa, feliz e bonita. Espero ansiosamente por uma resposta sua, menina Cila, na expectativa de um sim que, enquanto não chegar, não me deixará dormir descansado e em paz. Neste mundo tão atribulado, tão desnorteado e sem valores, um amor como o que eu desejo para nós seria um farol no nevoeiro, uma luz ao fundo do túnel, um milagre de bem-aventurança e de felicidade.
Carlos

Sunday, March 04, 2007

As últimas décadas da Póvoa de Varzim
vistas por um pessimista irremediável

“Os poveiros não gostam da Póvoa. Os poveiros gostam deles próprios. Não gostam da terra que têm. Destroem-na de tal maneira, que não podem gostar da Póvoa. E eu não gosto das pessoas que não gostam da terra que têm”. Não foi exactamente isto que o sociólogo António Barreto disse há dias numa entrevista a um jornal nacional. Em vez da Póvoa e dos poveiros, ele falou de Portugal e dos portugueses. Mas talvez não seja muito arriscado prever que se António Barreto tivesse nascido nesta terra do mar, se tivesse assistido às transformações drásticas por que passou nas últimas décadas, muito provavelmente diria desta terra o que disse do país.
É complicado olhar para trás, recuar trinta ou quarenta anos e fazer, depois, uma avaliação justa e crua da Póvoa de hoje. É impossível aliviar a memória do peso marcante de pessoas, episódios, casas, ruas e praças que povoaram as primeiras décadas da minha vida como poveiro.

Lembranças fortes de uma infância feliz

Os meus pais eram proprietários de um então afamado restaurante que ficava ali junto ao Cineteatro Garrett, na Rua da Senra. Tenho meia dúzia de lembranças fortes da minha infância, e estamos a falar de finais dos anos cinquenta e da década de sessenta do século passado.
A Póvoa, e o país, eram então muito maiores: lembro-me da primeira vez que fui ao Porto, como uma aventura inesquecível que alimentou conversas entusiasmadas cheias de autocarros de dois andares “à moda de Londres” e de táxis mercedes. Lembro-me que o restaurante de meus pais, em muitas semanas de Inverno, passava um dia, dois dias, três dias sem atender um único cliente. Lembro-me de jogar à péla na Páscoa, na minha rua, perto do Garrett, durante uma hora, duas horas seguidas, sem ter que desviar o banco que servia de cachola para dar passagem aos automóveis. Lembro-me das enormes pipas de vinho verde descarregadas de carros de bois, com a ajuda de duas trancas, para a tasca que ficava à frente do velho Restaurante Romero. Lembro-me das investidas rápidas de meu pai, com caçadeira e cão coelheiro, até aos campos nas traseiras do Liceu, de onde regressava poucas horas depois com dois ou três coelhos dependurados no cinto. Lembro-me dos meus vizinhos pescadores, ali tão perto, tão presentes, tão familiares, tão dependentes dos caprichos do tempo, das traições das ondas, dos perigos da barra e da terrível veia negociadora de minha mãe, que tentava ficar-lhes com as pescadas por tuta-e-meia…
O tempo corria devagar, as mudanças eram lentas, a pobreza persistente e a arrogância do poder infinita. Tudo concorria para uma monotonia parda que se encaixava numa espécie de subserviência rastejante que muita gente confundia com segurança, bem-estar ou mesmo com felicidade. Acontece que até um projecto de vida e de sociedade tão bem estruturado como o do regime salazarista não dura sempre. Tem o seu tempo, e o tempo da vidinha simples, conformada, educada e pobrezinha, que o homem de Santa Comba imaginou para Portugal, começou a dar sinais de crise.

Um dos primeiros sinais do “futuro”

Antes de escrever este texto, vi uma recolha muito curiosa de imagens datadas do início da década de sessenta, salvo o erro de 1962. Nessa altura, era ainda impossível prever o esticão que a terra iria levar década e meia depois. Vistas gerais da cidade filmadas do cimo da Igreja de S.José, mostram claramente que são ainda os edifícios religiosos a dominar a paisagem: o Desterro, a Misericórdia, a Srª das Dores, a Matriz, sobrepõem-se de forma esmagadora a um casario rasteiro, que raramente se atreve a ir além dos dois ou três pisos.
Na recta final dos anos sessenta do século passado - há uns bons quarenta anos, portanto -, surgiu um dos primeiros sinais do futuro. Era então presidente da câmara António Arriscado Amorim, e da cabeça de um investidor surgiu a ideia estrambólica de colocar a Póvoa no mapa ibérico da construção em altura, com o famoso projecto de um prédio de 28 andares, baptizado com o nome premonitório de Nova Póvoa. O poder local instituído achou muito bem, e chegou mesmo a embarcar no marketing do empreendimento, tratando de dizer ao mundo que aqui se estava a erguer nada menos do que “o maior edifício da Península”, o que, entre outras coisas, serve como ilustração da mentalidade tacanha dos homens do dinheiro e das autoridades locais. Uma mistura desgraçada, esta, a do dinheiro e a do poder volúvel e pouco esclarecido, que haveria de repetir-se nas décadas seguintes e que a democracia tornaria ainda mais agressiva e destruidora.
Na altura da revolução democrática, em 1974, a Póvoa estava praticamente igual à que eu conhecia quinze ou vinte anos antes. Uma terra com um comércio dependurado no turismo balnear, alguns pólos industriais com carácter, casos da Quintas & Quintas e de duas ou três conserveiras, um sector têxtil e de vestuário com alguma pujança, o jubiloso Casino e um núcleo piscatório com um significado e uma presença que ainda justificavam que se lhe chamasse “Póvoa do mar”. Descontando os poucos casos de explosão em altura, de que são exemplos o já referido prédio de 28 andares e o Edifício Sopete, construído em parte sobre o fantasma do velho Café Ribeiro, a Póvoa permanecia, há trinta anos atrás, uma terra que se desenvolvia em extensão, com construções baixas e adaptadas ao uso que se lhes dava.

Sobre a importância de defender o espírito dos lugares

Deixem-me fazer aqui um parêntese para vos dar conta de uma velha irritação. Quando se fala dos edifícios que foram arrasados na Avenida dos Banhos e no Passeio Alegre, e que deram lugar àquilo que hoje lá está, há quem defenda que essas construções não tinham suficiente interesse e dignidade arquitectónica para que perdêssemos muito tempo a defendê-las. É provável que isso seja verdade: as casas que foram demolidas nunca entrariam em nenhuma enciclopédia credível de arquitectura. Mas é igualmente verdade que o carácter e a cultura de um povo se medem também pelo modo como defende as suas referências, as suas memórias e o seu passado, mesmo que essas referências, essas memórias e esse passado não tenham os atributos de excelência que obriguem à sua defesa por imposição de leis e regulamentos.
Quero eu dizer com isto que a afirmação do carácter de um povo não se consegue apenas pelo respeito e defesa do que é óbvio e está protegido pela lei e pela autoridade. Demolir o edifício da Câmara, o Museu de Etnografia e História ou arrasar a Praça do Almada é não só impensável, como praticamente impossível. Não é por aí que se afirma o amor à terra e o respeito pelo seu passado, mas sim pelo empenho em manter o espírito de construções, usos e espaços desprotegidos como os que foram varridos do mapa, na zona balnear. E nem sequer me dou ao trabalho de fazer comparações estéticas e ambientais entre os velhos Passeio Alegre e Avenida dos Banhos e o paredão de cimento armado que lá está erguido. Não vale a pena.

A fúria construtiva dos anos oitenta e noventa

Não é esta a ocasião para falar das virtudes e consequências da Revolução do 25 de Abril. A liberdade é, felizmente para quase todos, um bem inestimável, e, só por isso, já teria valido a pena sacudir o fardo de meio século de ditadura. Mas a democracia e o abanão nas condições sociais sentido nos primeiros anos do novo regime, produziram efeitos nem sempre controlados e nem sempre positivos. Na entrevista de que falei há pouco, António Barreto dá conta da sua profunda tristeza pelo modo como cresceram muitas vilas e cidades portuguesas nas últimas décadas. O que mais o impressionou negativamente foram os subúrbios feios, caóticos, construídos a esmo, sem plano e sem gosto, degradando a paisagem e, muitas vezes, a vida das pessoas. Nas novas urbanizações poveiras isso também se nota, bastando lembrar o modo como se foi erguendo a zona habitacional a Norte do Estádio do Varzim.
Mas na Póvoa, tal como em infelizes exemplos da costa algarvia, o apetite voraz dos construtores e de toda a sorte de especuladores imobiliários não se contentou em erguer apartamentos e mais apartamentos em espaços virgens da cidade. Essa gente tratou também de se apoderar de áreas já edificadas, demolidas sem piedade e substituídas pelos afamados apartamentos “com vista para o mar”, com o mar tantas vezes substituído, pouco depois, pelo vizinho do prédio em frente. Este movimento acentuou-se sobretudo no início dos anos oitenta, e está, como muita gente sabe, associado a um sem número de histórias tão dramáticas quanto patéticas feitas de conluios indecentes entre interesses privados e poderes públicos.E está, também, intimamente relacionado com o modo como os poveiros encararam o processo: pondo de parte alguns críticos sem peso na vontade geral, a nova Póvoa da construção em altura, erguida sobre os escombros de um passado mais bonito e mais romântico, foi confundida com progresso e desenvolvimento e aplaudida pela grande maioria.

Um episódio revelador

Não vale a pena remexer demasiado nas histórias e protagonistas de uma época que marcou profundamente a Póvoa. Mas não resisto a contar um pequenino episódio que eu vivi na qualidade de jornalista do PÚBLICO. Na fase derradeira do consulado do ex-presidente Manuel Vaz, numa altura em que o autarca tentava a todo o transe assegurar a sua continuidade à frente da câmara, fui entrevistá-lo com uma colega do jornal. Uma das questões abordadas foi o escândalo da zona Norte e em particular o caso de um prédio a que foram milagrosamente acrescentados vários andares. A resposta do autarca foi notável: disse-nos que um dia, ao olhar inadvertidamente para o local onde estava a ser construído o tal edifício, estranhou a dimensão e a altura do empreendimento. Chegado à câmara, chamou o vereador responsável e o chefe do gabinete de urbanismo e perguntou-lhes se o prédio não estaria a subir mais alto do que o projecto… Interessa pouco saber qual foi a explicação avançada ao presidente da câmara. O que importa reter deste episódio é o absoluto divórcio da realidade e a irresponsabilidade de um homem que chegou à liderança do município poveiro e por lá permaneceu quase uma década e meia, com o voto maioritário do povo.

Bolsos cheios, cabeças vazias

Entre nós, o desenvolvimento provocado por uma melhor distribuição da riqueza teve efeitos perversos. A melhoria de salários e condições de vida e o acesso mais fácil aos negócios criou uma grande massa de novos consumidores e de detentores de riqueza que puxaram a economia para cima e forjaram novas necessidades. O problema é que os bolsos encheram-se muito mais depressa do que as cabeças. E não há nada pior do que novos ricos, pobres de espírito, a rebentar de orgulho e de vontade de afirmação. A Póvoa, tal como o país, sofreu com isso. O resultado que aí está, no Passeio Alegre, na Avenida dos Banhos, na Zona Norte, em muitas das novas urbanizações erguidas durante a fúria construtiva dos anos oitenta e noventa, são a consequência lógica de uma mistura de dinheiro fácil, com mentalidades tacanhas, falta de planos e regulamentos e libertinagem empresarial, tudo isto facilitado por alguns eleitos locais irresponsáveis, ignorantes e venais.
A Póvoa cresceu mal, não se respeitou a si própria, expulsou para as periferias o seu povo mais autêntico e carismático. Os mais pessimistas dizem que não há volta a dar, a não ser esperar que o tempo, os homens e mulheres do futuro, emendem os disparates acumulados nas últimas décadas. Falando com toda a franqueza, também eu não vejo saídas que reponham a aura de uma terra que se deixou cilindrar por aquilo a que alguns teimam em chamar “desenvolvimento”.
Carlos Romero

Monday, February 05, 2007

A “inclinação” de Bill Gates
e as virtudes da concorrência global

Há uma fotografia famosa da equipa comandada por Bill Gates ligada aos primeiros anos da Microsoft, datada, salvo erro, de 1978. A imagem provocou, muitos anos depois, um também famoso comentário, que dizia mais ou menos o seguinte: “Você confiava o seu dinheiro a estas pessoas?”. Olhando para aquelas criaturas, a vontade, de facto, era de não confiar… Quem assim pensava, como toda a gente sabe, enganou-se redondamente. A gigantesca operação de marketing para lançamento do novo sistema operativo da Microsoft que substituirá o Windows XP - o Vista -, foi o mais recente sinal do poder planetário do senhor William Henry Gates, um homem que, com apenas 51 anos, saltou da obscuridade informática de uma pequena empresa de barbudos, para o primeiríssimo lugar do ranking dos empresários mais ricos do mundo. É inútil tentar contabilizar a fortuna de Bill Gates: já terá ultrapassado os 50 mil milhões de dólares, um valor que corresponde, segundo especialistas na matéria, a “trinta fortunas” do engenheiro Belmiro de Azevedo e a pouco menos de um terço do valor do Produto Interno Bruto Português, que andará pelos 150 mil milhões de euros. Uma brutalidade, portanto.
O exemplo de Bill Gates tem sido usado como um trunfo inatacável pelos adeptos das virtudes da globalização e da livre iniciativa capitalista radical. O virtuosismo do empresário norte-americano nascido em Seattle é tão apreciado, que um seu colega de negócios, Warren Buffet, tido como “o segundo homem mais rico do mundo”, doou grande parte da sua imensa fortuna pessoal à fundação de Bill Gates e da sua mulher Melinda. Quer dizer: o patrão da Microsoft não se limita a ganhar rios de dinheiro, desígnio que, por si só, chega e sobra a muito boa gente para o alcandorar à condição de herói. Bill Gates foi mais longe na ilustração das virtudes neoliberais: homem de coração grande, Gates disponibilizou milhares de milhões de dólares para a sua filantrópica fundação, apostada em apoiar causas nobilíssimas de ajuda aos mais pobres, de combate a doenças e epidemias ou de promoção do ensino junto de populações carenciadas. Com mais 30 ou 40 anos de vida pela frente, Bill Gates deu a entender que o lançamento do Windows Vista seria a sua última intervenção de grande fôlego na Microsoft, passando, agora, a dedicar-se a tempo i
nteiro à sua milionária fundação e às causas humanitárias.
Vejamos agora o fenómeno por outra perspectiva (e sem entrar nas miudezas de contestar o domínio quase monopolista da Microsoft no negócio dos sistemas operativos, que tantas dúvidas suscita mesmo junto das liberalíssimas autoridades norte-americanas). Teria Bill Gates chegado onde chegou se o negócio fosse sujeito a constrangimentos legais ou fiscais mais pesados que o impedissem, a partir de certa altura, de acumular poder e capital? Os defensores radicais da concorrência a todo o custo e sem barreiras, dirão que não. O sonho de poder, de influência e de acumulação de riqueza não pode ter limites. É isso que move gente como Bill Gates, Belmiro de Azevedo e outros lídimos representantes do empresariado mundial. Trata-se de um retrato muito pouco abonatório e com uma debilidade monstruosa: se Bill Gates, em vez da sua “inclinação” filantrópica e humanitária, resolvesse comprar uma dúzia de ilhas carregadas de luxos asiáticos para passar lá a vidinha com a família e os amigos, que poderiam dizer os teóricos da livre concorrência e do enriquecimento ilimitado? Nada, a não ser avançar com uma hipotética condenação “moral”. Gates é filantropo porque lhe apetece. Se fosse outro o apetite do patrão da Microsoft, se ao senhor Bill Gates desse na gana de fazer o que fazem milhares de proprietários de fortunas indecentes, um terço do PIB português ia pelo cano.