Sunday, March 04, 2007

As últimas décadas da Póvoa de Varzim
vistas por um pessimista irremediável

“Os poveiros não gostam da Póvoa. Os poveiros gostam deles próprios. Não gostam da terra que têm. Destroem-na de tal maneira, que não podem gostar da Póvoa. E eu não gosto das pessoas que não gostam da terra que têm”. Não foi exactamente isto que o sociólogo António Barreto disse há dias numa entrevista a um jornal nacional. Em vez da Póvoa e dos poveiros, ele falou de Portugal e dos portugueses. Mas talvez não seja muito arriscado prever que se António Barreto tivesse nascido nesta terra do mar, se tivesse assistido às transformações drásticas por que passou nas últimas décadas, muito provavelmente diria desta terra o que disse do país.
É complicado olhar para trás, recuar trinta ou quarenta anos e fazer, depois, uma avaliação justa e crua da Póvoa de hoje. É impossível aliviar a memória do peso marcante de pessoas, episódios, casas, ruas e praças que povoaram as primeiras décadas da minha vida como poveiro.

Lembranças fortes de uma infância feliz

Os meus pais eram proprietários de um então afamado restaurante que ficava ali junto ao Cineteatro Garrett, na Rua da Senra. Tenho meia dúzia de lembranças fortes da minha infância, e estamos a falar de finais dos anos cinquenta e da década de sessenta do século passado.
A Póvoa, e o país, eram então muito maiores: lembro-me da primeira vez que fui ao Porto, como uma aventura inesquecível que alimentou conversas entusiasmadas cheias de autocarros de dois andares “à moda de Londres” e de táxis mercedes. Lembro-me que o restaurante de meus pais, em muitas semanas de Inverno, passava um dia, dois dias, três dias sem atender um único cliente. Lembro-me de jogar à péla na Páscoa, na minha rua, perto do Garrett, durante uma hora, duas horas seguidas, sem ter que desviar o banco que servia de cachola para dar passagem aos automóveis. Lembro-me das enormes pipas de vinho verde descarregadas de carros de bois, com a ajuda de duas trancas, para a tasca que ficava à frente do velho Restaurante Romero. Lembro-me das investidas rápidas de meu pai, com caçadeira e cão coelheiro, até aos campos nas traseiras do Liceu, de onde regressava poucas horas depois com dois ou três coelhos dependurados no cinto. Lembro-me dos meus vizinhos pescadores, ali tão perto, tão presentes, tão familiares, tão dependentes dos caprichos do tempo, das traições das ondas, dos perigos da barra e da terrível veia negociadora de minha mãe, que tentava ficar-lhes com as pescadas por tuta-e-meia…
O tempo corria devagar, as mudanças eram lentas, a pobreza persistente e a arrogância do poder infinita. Tudo concorria para uma monotonia parda que se encaixava numa espécie de subserviência rastejante que muita gente confundia com segurança, bem-estar ou mesmo com felicidade. Acontece que até um projecto de vida e de sociedade tão bem estruturado como o do regime salazarista não dura sempre. Tem o seu tempo, e o tempo da vidinha simples, conformada, educada e pobrezinha, que o homem de Santa Comba imaginou para Portugal, começou a dar sinais de crise.

Um dos primeiros sinais do “futuro”

Antes de escrever este texto, vi uma recolha muito curiosa de imagens datadas do início da década de sessenta, salvo o erro de 1962. Nessa altura, era ainda impossível prever o esticão que a terra iria levar década e meia depois. Vistas gerais da cidade filmadas do cimo da Igreja de S.José, mostram claramente que são ainda os edifícios religiosos a dominar a paisagem: o Desterro, a Misericórdia, a Srª das Dores, a Matriz, sobrepõem-se de forma esmagadora a um casario rasteiro, que raramente se atreve a ir além dos dois ou três pisos.
Na recta final dos anos sessenta do século passado - há uns bons quarenta anos, portanto -, surgiu um dos primeiros sinais do futuro. Era então presidente da câmara António Arriscado Amorim, e da cabeça de um investidor surgiu a ideia estrambólica de colocar a Póvoa no mapa ibérico da construção em altura, com o famoso projecto de um prédio de 28 andares, baptizado com o nome premonitório de Nova Póvoa. O poder local instituído achou muito bem, e chegou mesmo a embarcar no marketing do empreendimento, tratando de dizer ao mundo que aqui se estava a erguer nada menos do que “o maior edifício da Península”, o que, entre outras coisas, serve como ilustração da mentalidade tacanha dos homens do dinheiro e das autoridades locais. Uma mistura desgraçada, esta, a do dinheiro e a do poder volúvel e pouco esclarecido, que haveria de repetir-se nas décadas seguintes e que a democracia tornaria ainda mais agressiva e destruidora.
Na altura da revolução democrática, em 1974, a Póvoa estava praticamente igual à que eu conhecia quinze ou vinte anos antes. Uma terra com um comércio dependurado no turismo balnear, alguns pólos industriais com carácter, casos da Quintas & Quintas e de duas ou três conserveiras, um sector têxtil e de vestuário com alguma pujança, o jubiloso Casino e um núcleo piscatório com um significado e uma presença que ainda justificavam que se lhe chamasse “Póvoa do mar”. Descontando os poucos casos de explosão em altura, de que são exemplos o já referido prédio de 28 andares e o Edifício Sopete, construído em parte sobre o fantasma do velho Café Ribeiro, a Póvoa permanecia, há trinta anos atrás, uma terra que se desenvolvia em extensão, com construções baixas e adaptadas ao uso que se lhes dava.

Sobre a importância de defender o espírito dos lugares

Deixem-me fazer aqui um parêntese para vos dar conta de uma velha irritação. Quando se fala dos edifícios que foram arrasados na Avenida dos Banhos e no Passeio Alegre, e que deram lugar àquilo que hoje lá está, há quem defenda que essas construções não tinham suficiente interesse e dignidade arquitectónica para que perdêssemos muito tempo a defendê-las. É provável que isso seja verdade: as casas que foram demolidas nunca entrariam em nenhuma enciclopédia credível de arquitectura. Mas é igualmente verdade que o carácter e a cultura de um povo se medem também pelo modo como defende as suas referências, as suas memórias e o seu passado, mesmo que essas referências, essas memórias e esse passado não tenham os atributos de excelência que obriguem à sua defesa por imposição de leis e regulamentos.
Quero eu dizer com isto que a afirmação do carácter de um povo não se consegue apenas pelo respeito e defesa do que é óbvio e está protegido pela lei e pela autoridade. Demolir o edifício da Câmara, o Museu de Etnografia e História ou arrasar a Praça do Almada é não só impensável, como praticamente impossível. Não é por aí que se afirma o amor à terra e o respeito pelo seu passado, mas sim pelo empenho em manter o espírito de construções, usos e espaços desprotegidos como os que foram varridos do mapa, na zona balnear. E nem sequer me dou ao trabalho de fazer comparações estéticas e ambientais entre os velhos Passeio Alegre e Avenida dos Banhos e o paredão de cimento armado que lá está erguido. Não vale a pena.

A fúria construtiva dos anos oitenta e noventa

Não é esta a ocasião para falar das virtudes e consequências da Revolução do 25 de Abril. A liberdade é, felizmente para quase todos, um bem inestimável, e, só por isso, já teria valido a pena sacudir o fardo de meio século de ditadura. Mas a democracia e o abanão nas condições sociais sentido nos primeiros anos do novo regime, produziram efeitos nem sempre controlados e nem sempre positivos. Na entrevista de que falei há pouco, António Barreto dá conta da sua profunda tristeza pelo modo como cresceram muitas vilas e cidades portuguesas nas últimas décadas. O que mais o impressionou negativamente foram os subúrbios feios, caóticos, construídos a esmo, sem plano e sem gosto, degradando a paisagem e, muitas vezes, a vida das pessoas. Nas novas urbanizações poveiras isso também se nota, bastando lembrar o modo como se foi erguendo a zona habitacional a Norte do Estádio do Varzim.
Mas na Póvoa, tal como em infelizes exemplos da costa algarvia, o apetite voraz dos construtores e de toda a sorte de especuladores imobiliários não se contentou em erguer apartamentos e mais apartamentos em espaços virgens da cidade. Essa gente tratou também de se apoderar de áreas já edificadas, demolidas sem piedade e substituídas pelos afamados apartamentos “com vista para o mar”, com o mar tantas vezes substituído, pouco depois, pelo vizinho do prédio em frente. Este movimento acentuou-se sobretudo no início dos anos oitenta, e está, como muita gente sabe, associado a um sem número de histórias tão dramáticas quanto patéticas feitas de conluios indecentes entre interesses privados e poderes públicos.E está, também, intimamente relacionado com o modo como os poveiros encararam o processo: pondo de parte alguns críticos sem peso na vontade geral, a nova Póvoa da construção em altura, erguida sobre os escombros de um passado mais bonito e mais romântico, foi confundida com progresso e desenvolvimento e aplaudida pela grande maioria.

Um episódio revelador

Não vale a pena remexer demasiado nas histórias e protagonistas de uma época que marcou profundamente a Póvoa. Mas não resisto a contar um pequenino episódio que eu vivi na qualidade de jornalista do PÚBLICO. Na fase derradeira do consulado do ex-presidente Manuel Vaz, numa altura em que o autarca tentava a todo o transe assegurar a sua continuidade à frente da câmara, fui entrevistá-lo com uma colega do jornal. Uma das questões abordadas foi o escândalo da zona Norte e em particular o caso de um prédio a que foram milagrosamente acrescentados vários andares. A resposta do autarca foi notável: disse-nos que um dia, ao olhar inadvertidamente para o local onde estava a ser construído o tal edifício, estranhou a dimensão e a altura do empreendimento. Chegado à câmara, chamou o vereador responsável e o chefe do gabinete de urbanismo e perguntou-lhes se o prédio não estaria a subir mais alto do que o projecto… Interessa pouco saber qual foi a explicação avançada ao presidente da câmara. O que importa reter deste episódio é o absoluto divórcio da realidade e a irresponsabilidade de um homem que chegou à liderança do município poveiro e por lá permaneceu quase uma década e meia, com o voto maioritário do povo.

Bolsos cheios, cabeças vazias

Entre nós, o desenvolvimento provocado por uma melhor distribuição da riqueza teve efeitos perversos. A melhoria de salários e condições de vida e o acesso mais fácil aos negócios criou uma grande massa de novos consumidores e de detentores de riqueza que puxaram a economia para cima e forjaram novas necessidades. O problema é que os bolsos encheram-se muito mais depressa do que as cabeças. E não há nada pior do que novos ricos, pobres de espírito, a rebentar de orgulho e de vontade de afirmação. A Póvoa, tal como o país, sofreu com isso. O resultado que aí está, no Passeio Alegre, na Avenida dos Banhos, na Zona Norte, em muitas das novas urbanizações erguidas durante a fúria construtiva dos anos oitenta e noventa, são a consequência lógica de uma mistura de dinheiro fácil, com mentalidades tacanhas, falta de planos e regulamentos e libertinagem empresarial, tudo isto facilitado por alguns eleitos locais irresponsáveis, ignorantes e venais.
A Póvoa cresceu mal, não se respeitou a si própria, expulsou para as periferias o seu povo mais autêntico e carismático. Os mais pessimistas dizem que não há volta a dar, a não ser esperar que o tempo, os homens e mulheres do futuro, emendem os disparates acumulados nas últimas décadas. Falando com toda a franqueza, também eu não vejo saídas que reponham a aura de uma terra que se deixou cilindrar por aquilo a que alguns teimam em chamar “desenvolvimento”.
Carlos Romero

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