Saturday, March 17, 2007

Menina Cilinha

Venho, por este meio, propor-lhe que viva comigo. Debaixo do mesmo tecto. No meio dos mesmos tachos e panelas. Entre os mesmos lençóis. A comer da mesma travessa. A partilhar a mesma televisão e o mesmo sistema de alta-fidelidade. Para que decida com plena consciência, vou apresentar-me. Sou aquele rapaz que partilhou com a menina, num restaurantezinho simpático da Gafanha, pataniscas de bacalhau, orelha de porco, pernas de polvo com salsa e cebola e enguias fritas. Lembra-se? Falámos de jornais e jornalistas, dos efeitos colaterais do colapso do antigo império soviético, de rosas, de ritas, de claras, de neves, de madeiras rosadas de carvalho, de amores desfeitos. Lembra-se?

Perdoe-me a ousadia de me apresentar como “o rapaz” que esteve consigo. É mal de família. Os Romeros envelhecem devagar, sabe? O meu irmão, que tem mais onze anos do que eu, diz-me de vez em quando, muito triste, que lhe morreu o amigo Daniel, o Armando, o Quim, todos rapazes com sessenta e tal, setenta anos... Ora, se o meu mano se mira ao espelho e não vê outra coisa que não seja um rapaz, parece-me insensato, como benjamim da família, que eu passe a ser “o senhor Carlos”, não acha?

Antes de regressar à essência desta missiva, deixe-me confessar-lhe uma mágoa: eu gostaria de lhe remeter uma carta pelo correio, pulverizada com cheirinho de alfazema e com duas ou três flores secas colhidas no meu jardim; e, naturalmente, manuscrita. Acontece que a magia das cartas perfumadas e escritas pelo próprio punho desapareceu definitivamente. Ao contrário do que se diz por aí, o fim das velhas cartas não resultou da invasão das máquinas que fizeram a felicidade e a fortuna de Bill Gates, mas sim da inversão de valores e da morte da poesia nos amantes modernos. Com o abandono do papel e das canetas de tinta permanente, e com a substituição dos perfumes de alfazema da Casa Confiança, de Braga, pelas sofisticações parisienses do Calvin Klein, tudo se alterou.

Hoje, mandar uma carta de amor pelo correio arrisca-se a ser mais ridículo do que a própria carta de amor. Porque é provável que o destinatário da cartinha romântica a não distinga, num primeiro olhar, da conta da Telecel, ou da Portugal Telecom, ou da TV Cabo, ou do extracto mensal da Caixa Geral de Depósitos. E mesmo que essa confusão se desfaça logo a seguir, fica irremediavelmente conspurcado o romantismo da perfumada declaração. Vai daí, desisti do intento de lhe remeter uma carta em papel, cheirosa, escrita por mim e enviada pelos Correios. Perdoe-me, portanto, a frieza deste e-mail.E perdoe-me, também, este longo parêntese tecnológico. Voltemos ao que importa. Sou um rapaz descomprometido, sem mazelas físicas visíveis e sem pancadas emocionais ou psíquicas de maior. Nos últimos anos, devido ao meu labor profissional e à falta de adequadas protecções de écran, a minha acuidade visual degradou-se bastante e fui obrigado a usar óculos para corrigir os efeitos da vista cansada e de uma ligeira distorção do cristalino. Nada de grave, garanto-lhe. Mesmo sem óculos, ainda consigo distinguir a menina Cila da minha colega Teresa de Sousa.

Tenho casa posta em Vila do Conde, uma pequena cidade localizada na foz do rio Ave, a 25 quilómetros do Porto. A casa, um T2 espaçoso e bem conservado, sofre de um mal desagradável nos dias de Inverno mais rigorosos: é demasiado fria, talvez por ser grande demais só para mim. O seu assentimento para uma vida a dois tinha, para além de muitas outras, a vantagem suplementar de podermos aproveitar melhor o espaço do apartamento. É capaz de ser conveniente, também, temperar com uns tapetes a fria tijoleira que cobre todas as divisões da casa, mas essa é tarefa que eu gostaria de partilhar com a menina Cila.

O recheio do T2 é propriedade do senhor Joaquim, o meu senhorio, que me cobra todos os meses 450 euros para permitir o usufruto da sua propriedade. O mobiliário não é feio nem bonito, bem pelo contrário, mas esses são pormenores sem grande importância. Uma menina como a Cilinha faz do canto mais humilde um palácio para os homens mais exigentes. Não nasceu Jesus entre as palhinhas? O meu T2 tem a vantagem, sobre a cabaninha do Menino, de ter dois aquecedores, o que nos permite prescindir da vaca e do burro.

Não é meu feitio gabar-me de capacidades que não possuo. Sei cozinhar, passar a ferro, sei conduzir, lavar a loiça, sei mudar uma lâmpada, usar o Black & Decker, pendurar quadros nas paredes. Tenho gostos muito abrangentes, em praticamente todos os capítulos da vida. Por exemplo, gosto desde um peixinho cozido com legumes e batatas, regado com molho fervido ou azeite simples com um trago de vinagre, até uma massada de peixe ou uma moamba de galinha com óleo de palma. Gosto de um jantar a dois, preparado por mim, a plena luz ou iluminado por velas de estearina, com o Caetano, a Bethania ou a Elis em suave fundo musical, e não faço dos pratos e dos tachos semeados pela cozinha um drama fatal. Aliás, tenho uma maneira de preparar as refeições que deixam muito pouco por arrumar. Garanto-lhe, menina Cila, que é mesmo assim. Mas não prescindo, sempre que posso, de deixar para as cozinheiras do Camelo, de Santa Marta de Portuzelo, ou da Bolota Castanha, de Elvas, a tarefa de confeccionar petiscos que me deixam a salivar só de pensar neles.

Quanto a artes e espectáculos, a receita é a mesma da culinária. Gosto de quase tudo. Ando há mais de 20 anos a ouvir versões dos concertos brandeburgueses do João Sebastião Bach, ou das suas Variações Goldberg. Já fiz incursões pela música contemporânea, por exemplo a de Pierre Boulez, mas a experiência auditiva de Pli selon Pli, por exemplo, foi demasiado traumatizante para mim – adormeci a meio da obra e acordei aos saltos com os operáticos berros de uma senhora com uma voz ainda mais potente que os seus enormes peitos. Gosto de fado, a começar pela Amália, o Marceneiro e o Carlos Ramos, e a acabar no Camané e na Mafalda Arnauth. Gosto do sublime mau gosto de António Variações, gosto dos Beatles e dos Stones, dos Cake e dos Tindersticks, gosto da autenticidade de Mónica Sintra, uma espécie de “crooner” dos pobrezinhos e das sopeiras que, como deve calcular, também têm direito à vida, aos seus dramas e à sua música. Gosto, enfim, de futebol, e das modalidades menos apoiadas, como o andebol, o basquete, o cricket, o pião, as damas, a sueca e a bisca lambida.

E gosto de fotografia. Muito. Esta velha inclinação pela imagem nasceu por volta dos meus 14, 15 anos. Nessa altura, transformei um dos quartos devolutos do restaurante dos meus pais numa câmara escura onde a magia dos banhos químicos e da luz do ampliador fazia aparecer árvores, amigos, familiares, ondas revoltas, em papéis de brometo de prata balanceados em tinas de plástico. O meu amor acrisolado pela fotografia tem algumas vantagens. Se a comunhão de cama e mesa, que eu proponho à menina Cilinha, der um dos seus frutos possíveis – um pimpolho saudável, com a cara da mãe e o feitio do pai -, está garantida a cobertura fotográfica de todos os passos do seu desenvolvimento: o corte do cordão umbilical, o primeiro banho, a primeira fralda, a primeira mamada, a primeira papa, o primeiro sorriso, o primeiro aniversário, a alegria dos avós... Era tão bonito, não acha?

E pronto, dou por terminado este intróito de uma relação que eu desejo, do fundo do coração, que seja longa, feliz e bonita. Espero ansiosamente por uma resposta sua, menina Cila, na expectativa de um sim que, enquanto não chegar, não me deixará dormir descansado e em paz. Neste mundo tão atribulado, tão desnorteado e sem valores, um amor como o que eu desejo para nós seria um farol no nevoeiro, uma luz ao fundo do túnel, um milagre de bem-aventurança e de felicidade.
Carlos

4 Comments:

Blogger carlos romero said...

Escorro agora vida, de novo. E algumas lágrimas alegres. Uma explosão de
vida, esse texto. Uma ode, sinfonia, ópera de travo doce... dança etérea de
peles macias. Carossel de olhos fundos a trnspirar desejo, simples. Feroz,
florido. Praias de consentidos baixos ventres.
Parabéns, Carlos.
Notável, homem dos Romeros.
Que honra saber que apreciamos o mesmo mar. E que às vezes nos encontramos a
caminho da ilha.
Nuno

6:01 PM  
Blogger José Leite said...

Pela primeira vez aqui vim, como quem dobra o "Cabo da Boa esperança", sinto que ainda há gente boa, famílias com princípios.

Esta carta é um autêntico "documento histórico" digna de ser analisada por algum Saramago da nossa praça!

Os comentários de Carlos romero também são "a cereja em cima do bolo"!

Tiro-lhes, respeitosamente, o meu humilde chapéu.

10:23 AM  
Blogger Armindo de Jesus said...

tive uma namorada a quem chamava cilinha. aquilo deu para o torto e ainda bem.
:)

nada como ler um texto bem escrito.
porta-te bem, romero, que por cá passo em tom de correria pascácia, assim à moda político simplex.
:)

3:55 AM  
Blogger Mónica said...

com tanta missiva a menina adormeceu

11:15 AM  

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