Tuesday, March 07, 2006


O amado papa Karol Wojtila em Portugal
12 a 15 de Maio de 1982


1. Entre os dias 12 e 15 de Maio de 1982, o papa João Paulo II visitou Portugal a pretexto da peregrinação ao santuário de Fátima no dia 13 desse mês. Por todo o país, multiplicaram-se as manifestações de afecto para com o mais alto dignitário da igreja de Roma e de boas-vindas ao "primeiro peregrino de Fátima". Uma das manifestações mais visíveis dessa autêntica apoteose que rodeou a vinda do papa iniciou-se muitos dias antes da visita propriamente dita.
Nas portas e janelas de casas particulares, em edifícios públicos, nos automóveis, nos autocarros e, sobretudo, nas montras de milhares de lojas, as pessoas afixaram cartazes com a figura de João Paulo II, afirmando, com isso, a grande satisfação que sentiam pela deslocação do papa a terras portuguesas.
Estas fotos são um testemunho particular desse ambiente geral de júbilo e de satisfação que varreu o país de lés a lés. Registam o modo como, na cidade da Póvoa de Varzim, por onde o papa não passou, as pessoas manifestaram o seu contentamento com a estada em terras lusas de Karol Wojtila.
2. O registo fotográfico privilegiou as montras das casas comerciais, pois foi muito rara a que não ficou marcada pelo evento religioso. Essa opção decorreu, digamos, da representatividade estatística desses especialíssimos microcosmos. Mas o principal motivo que me levou a escolher as montras foi de outra ordem. As montras das lojas são quase sempre espaços encenados, criteriosamente preparados, funcionando como amostras do que de melhor os comércios têm para oferecer aos potenciais clientes. São, nessa medida, espelhos exemplares do gosto reflectido dos seus proprietários, por um lado, e, por outro lado, sinais reveladores das suas estratégias de sedução comercial.
As três ou quatro fotos que trocam as montras por casas particulares denotam igualmente a intenção dos seus moradores de dizerem aos outros que gostam do papa, constituindo, também, pequenas encenações, embora mais grosseiras e descuidadas.
3. As fotos podem dividir-se em dois tipos: as que destacam o modo como os "encenadores" comerciais ou as pessoas combinaram os cartazes e as imagens do papa com a habitual parafernália de produtos que compõem uma montra ou que marcam uma janela que se mostra à vizinhança (com as cortinas, os vasos...); e as que mostram a figura do papa - em papel, em tecido, estampada num prato - descontextualizada, isolada, valendo por si.
No caso das combinações do papa com os produtos comerciais, o que parece é que os "encenadores" acreditam que os símbolos papais e religiosos não ganham outras leituras e não perdem o seu valor original quando misturados, colocados lado a lado, por cima ou por debaixo de outras coisas ou de outros símbolos. Essa fé inquebrantável na resistência dos significados e das simbologias originais conduz, por vezes, a inesperados e surpreendentes conjuntos de forte carga surreal.
Esta desarticulação simbólica, esta radical incapacidade de integrar diferentes peças em conjuntos homogéneos e lógicos é, parece-me, uma das características do chamado gosto popular que alimenta algumas fórmulas de organização erudita e calculada de símbolos, de formas, de histórias.
As figuras isoladas, ou quase, de João Paulo II aqui registadas indiciam igualmente uma crença muito forte na irredutibilidade da sua simbologia original e na capacidade que têm de ultrapassar com êxito quaisquer vicissitudes relacionadas com a sua inteligibilidade.
Carlos Romero
Março 2005